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Gosto do Gosto Gostoso
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Publicado em 17/07/2024

Olá, gente boa,

É sempre importante falar sobre a ditadura e ter muita paciência com a menina democracia. Essa frase do professor José Alves me faz lembrar dos anos 70 e 80, tempos em que todos nós andávamos em busca de liberdade e democracia, usando nossas músicas, nossos estilos, e principalmente, nossa rebeldia. Éramos vigiados, registrados e acompanhados sempre pelos censores e dedos-duros dos poderosos de plantão. Nossos shows eram aprovados ou não, e, quando aprovados, sempre havia no público um “cagueta” ou um “X-9” para fiscalizar o roteiro aprovado. Assim vivíamos, em busca de um espaço livre para conversar, trocar ideias, tocar e compor nossas músicas, e beber uma gelada, pois ninguém é de ferro.

Escolhíamos sempre à casa de alguém, na minha, na Rua Ribeirópolis, ou na de Alexi, na Rua de Campos, ou na casa de Denys, na Marechal Deodoro. Também usávamos o Bar do Barbudos ou do Manequito, mas foi nos anos 80 que surgiu o espaço ideal no Bairro Grageru, próximo da Avenida Saneamento e a 100 metros de um dos conjuntos habitacionais mais tradicionais da época, o Conjunto Cidade dos Funcionários, criado nos anos 60 no governo de Seixas Dórea, um dos nossos presos políticos pela ditadura militar. Bar Gosto Gostoso.

Como escreveu o poeta Amaral Cavalcante, o Gosto Gostoso era o bar da guerrilha jovial da cidade nos anos 80, o aparelho dos descontentes. O espaço da liberdade que tanto buscávamos. Ativistas políticos, revolucionários, artistas, poetas, bêbados e equilibristas, estudantes e mestres, todos juntos e misturados, solidários e irmanados ao som de boa música, bons pratos, boas bebidas e ótimas companhias.

Um dia, Marcelinho Barreto me disse: “Dedeu, vamos ao Gosto Gostoso. Vou me encontrar com Deda (Marcelo Deda), Milsinho (Milson Barreto), Goizinho e a turma do PT. Quem vai tá lá também e Lula, pega o violão e vamos pra lá.” E assim cheguei pela primeira vez naquele “Aparelho Comunistas”, como o bar era chamado pelos militares. Foi lá que conheci Lula, Amaral Cavalcante, os guerrilheiros Eugênio Nascimento, Adiberto Souza, Cleomar Brandi, Zenóbio Melo, Fernando Savio e meu amigo Eufrásio Santos,  Goizinho, Gilvan Manoel, Adelson Alves, Chico Buxinho, Céu, Ofélia, Gilson Sousa,  sempre encontrava os amigos e amigas como Edvaldo Nogueira, Daria e Andreia, Sucupira, Renatinho, Tonho Leite, Zé Eduardo,  Chico Pires, Genival Nunes, Tita, Jorge Lins, Boneca, Bell, Professor Paulino, Valdefrê, os Tonho e José Amaral entre tantos marxistas que acreditavam que a transição do capitalismo ao socialismo é uma parte inevitável do desenvolvimento da sociedade humana, algo em que acredito até hoje; os ortodoxos trotskistas, os intelectuais e pseudos, os barbudos do partido, os sem barba próximos dos movimentos, nós, os artistas, os vagabundos da época, e um público ávido por liberdade.

O Gosto Gostoso tinha seus diferenciais. Seu dono, Fernandinho, um Papa Jaca de alta estirpe apaixonado por música nordestina, trazia shows e artistas nacionais como Alceu Valença, Xangai, Elomar, Vital Farias, que se juntavam aos nossos: Pantera, Chico Queiroga, Cesar, Claudio Miguel, Paulo Lobo, Emanuel Dantas, Doca, Nino Karvan, Antônio Rogerio entre tantos outros que se dispuseram a deixar suas canções nas nossas lembranças.

Regado a maniçoba, tripa de porco torrada, frango a passarinho e um sarapatel de deixar qualquer revolucionário com água na boca e sem discurso, o “cabra véio” do Fernandinho dizia que era ele quem preparava tudo e que trazia dos Papa Jacas indígenas toda a sapiência desses pratos icônicos.

Éramos felizes, humorados, cada um na sua, uns com suas bolsas de couro cru, que exalavam um cheiro terrível durante algum tempo. O nosso poeta Amaral descreveu assim: “Eram as bolsas de couro cru a tiracolo. Cada um carregava nelas o seu arsenal bélico: folhas soltas com desenhos malucos, doutrinas, diários guevarianos, manifestos, a última edição de Carlos Zéfiro e, lá no fundo, perfumando tudo, o providencial baseado – que ninguém é de ferro!”

Lá, não se criavam os inimigos da liberdade que fingiam ser seus defensores. Estávamos sempre prontos a lutar pela liberdade, discutindo, conversando e colocando nossos ideais e verdades. No Gosto Gostoso, sempre usávamos a terceira pessoa do plural, “nós”. Não éramos inimigos; estávamos lá para ganhar ou perder a discussão e não destruir a divergência.

Gosto Gostoso, o gostoso mesmo foi estar por lá, e viver esse tempo de liberdade Pura.

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